sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A sexualidade dos heróis

HQs abordam mais abertamente a diversidade sexual, tornam-se alvo de protestos de conservadores e estimulam o debate sobre a tolerância

originalmente publicado em: 17/06/2012 - 19h57 - Atualizado em 17/06/2012 - 19h57
A Gazeta - http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/06/noticias/a_gazeta/caderno_2_ag/1278017-a-sexualidade-dos-herois.html

Quadrinhos - HQs - sexualidade dos herois
Tiago Zanoli
tzanoli@redegazeta.com.br

Duas notícias no mundo dos quadrinhos deram o que falar recentemente. Uma delas dizia respeito ao casamento de Estrela Polar – o primeiro personagem assumidamente homossexual da Marvel Comics – com Kyle Jinadu. A história será publicada nesta quarta, nos Estados Unidos, no número 51 da revista "Astonishing X-Men". A outra revelou que Alan Scott, o Lanterna Verde original, surgido em 1940, está de volta nas páginas da série "Earth 2", da DC Comics, na qual assume sua homossexualidade. Nos quadrinhos, aliás, ele aparece beijando outro homem.

Inevitavelmente, um grupo conversador cristão chamado One Million Moms (Um Milhão de Mães) protestou contra as duas editoras, alegando ser má influência paras as crianças, que "desejam ser como os super-heróis", imitando suas ações e fantasiando-se com seus uniformes. "Essas empresas influenciam fortemente nossa juventude por meio desses super-heróis, para fazer uma lavagem cerebral e fazê-la pensar que o modo de vida dos gays é normal e desejável. Como cristãos, sabemos que a homossexualidade é um pecado", dizia o grupo, em determinado trecho da carta de repúdio.

Nos Estados Unidos, já se fala em uma fase "rainbow pride" (orgulho arco-íris) nos quadrinhos de super-heróis. No início do mês, em entrevista ao site da revista "The Advocate" (www.advocate.com), o roteirista James Robinson, responsável pela mudança da orientação sexual do primeiro Lanterna Verde (favor não confundir com o famoso Hal Jordan, levado para os cinemas), afirmou que haverá outro personagem gay e que há também possibilidade de mudança de gênero na série "Earth 2" (que é, na verdade, uma realidade alternativa do universo criado pela DC Comics). Esse momento dos quadrinhos pode ter um papel importante na conscientização do público em favor do respeito e da tolerância à diversidade sexual – algo urgente numa época em que se vê, com frequência, várias demonstrações de intolerância, que culminam em agressões físicas de homossexuais ou, pior, assassinatos.

"O impacto mais óbvio é essa reação negativa das mães à inclusão dessa temática nas histórias. Os quadrinhos têm esse histórico de suscitar sentimentos de revolta nos pais, por serem um veículo cujas prerrogativas morais são, em muitos casos, diferente das deles. É um segmento poderoso que se insere no imaginário popular de maneira eficiente, e os conservadores não dominam nem têm tanto poder assim sobre ele. Por isso, sempre haverá protestos contra essas medidas e esse segmento. Por outro lado, o impacto pode ser positivo, se considerarmos os efeitos de conscientização e massificação da luta pelo reconhecimento dos direitos homoafetivos", afirma o artista e pesquisador Ailton Berberick, que é graduando em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em Artes Visuais, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Berberick, que integra um grupo de estudos sobre arte, cultura e gênero na Uerj, ressalta que nos quadrinhos orientais sempre houve personagens gays e enredos inteiros sobre homossexualidade nas história. "Achei interessante essa proposta da Marvel e da DC, mas minha história como leitor de quadrinhos japoneses e coreanos não faz com que eu me surpreenda". Segundo ele, até pouco tempo atrás, não havia nos quadrinhos debates em torno da diversidade sexual, como agora. "Era como se o mundo dos super-heróis, homens e mulheres extraordinários e louváveis, fosse predominantemente heterossexual. Hoje a diversidade ‘invade’ os quadrinhos e mostra que esses homens e essas mulheres extraordinários e louváveis podem ter as mais diversas orientações sexuais".


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O herói Estrela Polar (à dir.), da Marvel, casou-se com o seu companheiro
Tendência

Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e professor universitário, Attila Piovesan observa que essa onda reflete uma tendência. "Na configuração social atual, a homossexualidade deixou de ser tabu para a maioria das pessoas, o que inevitavelmente gera reflexo em produtos culturais". Estudioso do universo dos quadrinhos (sua dissertação de mestrado abordou a relação entre HQs e literatura), ele observa, contudo, que as editoras de quadrinhos norte-americanas, as maiores responsáveis por publicar super-heróis, há décadas travam uma batalha contra o encolhimento do mercado, o número cada vez mais reduzido de leitores e a falta de renovação do público leitor.

"Um dos fatores apontados para essa ‘crise’ nas histórias de super-heróis foi justamente o de ser um produto focado em um tipo bastante específico de leitor: branco, em fins da adolescência, mas principalmente adulto, do sexo masculino, que já lê quadrinhos há muitos anos. Isto é bastante restritivo, se pensarmos que existem públicos com preferências e elementos de identificação bastante heterogêneos. Por isso, temos vários personagens latinos atualmente nas HQs americanas, assim como maior representatividade de outras etnias e preferências sexuais e mesmo religiosas".

Ou seja, discurso à parte, há também interesses comerciais em jogo, como observa o historiador e professor de história Sávio Roz, de Salvador (BA), que também pesquisa e escreve artigos sobre quadrinhos: "Estamos falando de mercado editorial, de um produto feito para chamar a atenção e vender. E está funcionando perfeitamente. É uma estratégia fantástica. A Marvel trouxe o casamento gay, e em resposta a DC anunciou que um de seus heróis é gay. Escolheram o Alan Scott, que podemos chamar de um personagem de segundo escalão, e não Hal Jordan, o mais famoso. Com isso, não correram o risco de investir numa empreitada malsucedida. Considero a ação da Marvel mais honesta, pois o Estrela Polar é assumidamente homossexual desde a década de 1990".

Sávio diz, porém, que não existe hoje um público homossexual leitor de quadrinhos que surgiu da noite para o dia. Na verdade, ele sempre existiu. "A diferença é que a própria sociedade está mais flexível, e tornou-se mais seguro discursar sobre isso abertamente". Com isso, ressalta, há dois caminhos possíveis. O primeiro é tornar possível a discussão e o diálogo em torno desse assunto. "O caminho perigoso, porém, é a transformação da diversidade sexual em alegoria, adotando clichês e estereótipos, assumindo um tom pejorativo ou mesmo mudando a conduta do personagem. Vejo isso acontecer nos quadrinhos. A reação de parte do público é risonha, especulando que será o próximo super-herói a ‘sair do armário’. Com isso, estamos ridicularizando o próximo".

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Meia-Noite (à frente) e Apolo, da série “The Authority”, também são gays
Conceito

O ilustrador Jean Froes, que já desenhou para histórias da Mulher Maravilha e do personagem Cyborg, da DC Comic, e foi arte finalista de X-Factor, para a Marvel, tem algumas ressalvas quanto à mudança de orientação sexual de personagens clássicos, acrescentando que talvez fosse mais interessante criar novos personagens. "Existe um vínculo do fã com o personagem, uma ideia sobre como esse personagem participa desse universo ficcional, qual a sua posição ali e, por fim, o que o faz ser atraente e único. Se você pega um personagem clássico e, de repente, diz que ele não é como todo mundo conhecia – seja um clone, um andróide, gay –, você muda todo o conceito criado. Acho que nem sempre o resultado se torna positivo. Inserir novos personagens é mais válido do que tentar chocar ou reavivar algo esquecido".

Jean também acredita que são questões mercadológicas que motivam a presença desse "novo discurso" no universo dos quadrinhos. "Não sou muito romântico em relação a isso e acho que as vendas são realmente o principal foco desse tipo de escolha. Acredito que seja um meio de alavancar as vendas, seja chamando a atenção do público consumidor de quadrinhos para algo diferente, seja atraindo a atenção de um público diferente, por exemplo o publico LGBT. Obviamente, aqueles que ainda não são leitores de quadrinhos".

Para Attila, embora as editoras atualmente adotem uma postura favorável à homossexualidade, isso não é apenas questão de responsabilidade social: "Na verdade, desde fins dos anos 80, editoras como a Marvel e a DC adotam uma postura de tolerância, espalhando diversos personagens gays aqui e acolá em seus títulos. Contudo, antes esses personagens eram periféricos, secundários. Agora são coadjuvantes de peso ou mesmo personagens-título, como a Batwoman. Essa mudança, além de convenientemente reforçar a ideia de tolerância, vai ao encontro da necessidade mercadológica de atrair novos leitores".

Jean lembra ainda que há outros super-heróis gays no universo da DC Comics, na série "The Authority", criada por Warren Ellis e Bryan Hitch. Ele se refere à dupla Meia-Noite e Apolo (inspirados, respectivamente, em Batman e Super-Homem). Perguntado sobre as especulações em torno da sexualidade de Batman e Robin, o ilustrador responde: "Não há uma relação homossexual entre eles. Não acho que foram criados assim".
Análise Mais consciência sobre o respeito à diversidade

O “boom” de super-heróis gays nos quadrinhos ocidentais é tanto uma estratégia comercial quanto um processo de assimilação das questões sociais que se desenvolvem hoje nos Estados Unidos. Devemos lembrar que os quadrinhos são ficção, e uma de suas caraterísticas é a presença de elementos que operam como ponte entre a realidade e o universo ficcional. Durante a Segunda Guerra Mundial foi criado o Capitão America, que influiu no imaginário norte-americano propondo o senso de patriotismo necessário para preparar as próximas gerações para a Guerra Fria que se seguiria. Durante o conturbado momento de luta pelos direitos das minorias, a Marvel surgiu com os X-Men, dialogando com o sentimento social de contestação e transformações que a sociedade presenciava naquele exato momento. O atual “boom” de personagens gays é fruto de mais um momento histórico, no qual essas questões se tornaram tão potentes e tão presentes na sociedade, que é impossível não assimilá-las nas narrativas. Se considerarmos que a batalha pelo reconhecimento dos direitos homoafetivos tem seu maior opositor nas questões culturais, a atual fase dos quadrinhos se apresenta como um aliado na desconstrução e na educação desta e de futuras gerações. Como efeito, a longo prazo, teremos um público mais consciente sobre o respeito à diversidade sexual e afetiva.


Ailton Berberick artista, pesquisador e graduando em Filosofia, pela UFRJ, e Artes Visuais, pela Uerj

Capitão América: um herói menos imperialista do que parece

Pesquisador afirma que o personagem foi mais crítico do que incentivador do governo norte-americano nos quadrinhos

Apesar de ganhar proporções internacionais com o lançamento do filme "Capitão América: O Primeiro Vingador", a fama de representar o imperialismo norte-americano sempre esteve associada ao herói, cujo uniforme e nome não deixam dúvidas sobre a sua origem.
O título do longa causou incômodo em alguns países, como Coréia do Sul e China. Na Rússia, a produção estreia apenas como "O Primeiro Vingador".


Foto: Divulgação
Capitão América: nos quadrinhos personagem foi um dos mais críticos ao governo dos Estados Unidos
Nos quadrinhos, Steve Rogers (nome real do herói) provou diversas vezes ser mais crítico ao governo de seu país do que o garoto propaganda criado em 1941, que durante a Segunda Guerra Mundial simbolizou a luta dos Estados Unidos contra o nazismo. E isso tem início ainda nos anos 1940, com o término do conflito que justificou a criação do herói.
"A criação do Capitão América foi uma esperteza de mercado da editora [Timely Comics]. No período, o governo dos EUA incentivou, com descontos em impostos, quem fizesse propaganda ideológica norte-americana", explica o quadrinista e historiador Sávio Queiroz Lima, que pesquisa HQs e suas relações com a história.

Com o fim da Segunda Guerra, os executivos da Timely Comics decidiram suspender as histórias do Capitão América. O personagem retornaria vinte anos mais tarde, quando a editora já era conhecida como Marvel Comics. Em sua "ressurreição", o herói é encontrado congelado e passa a integrar Os Vingadores, equipe formada por nomes como Homem de Ferro e Thor.
Durante a Guerra Fria, o personagem passou a refletir sobre a dificuldade de lidar com mocinhos e bandidos. "Era fácil odiar o nazista, pois ele era um inimigo muito romântico, um cara mau, burocrático. Mas quando ele volta nos anos 1960, descobre que odiar o comunista não tem a mesma facilidade. E o ambiente nos EUA também muda nesse período", afirma Sávio.
Nos anos 1970, desanimado com os escândalos envolvendo o presidente Richard Nixon [o político renunciou ao cargo], Steve Rogers abandonou o uniforme de Capitão América e adotou a identidade de Nômade, herói viajante que testemunhou as mazelas do país em viagens por seu interior.
"O Capitão oscila entre dois universos: a política interna e a externa. Na externa, ele se posiciona como norte-americano, como ocorreu na Segunda Guerra. Mas nos anos 1970 e 1980, ele volta-se à política interna, e critica o próprio Estados Unidos."
De volta ao uniforme tradicional azul, o personagem mergulhou no cotidiano dos guetos de Nova York ao lado do herói negro Falcão - e testemunhou uma América pobre, violenta.
Para Sávio, o período revela a liberdade que os autores tinham dentro da editora para criticar o governo do país. "O herói ganha uma visão mais intimista e passa a questionar os EUA. E ao representar o ideal do homem comum norte-americano, ele passa a vender fácil, pois o público quer alguém que critique o governo."
Pós-11 de Setembro
Em 2001, após a queda das Torres Gêmeas, o Capitão América aparece em algumas histórias enfrentando terroristas. Esse período foi conhecido como Guerra ao Terror. Porém, seus autores evitaram a questão religiosa, não colocando o personagem em luta contra muçulmanos.


Foto: Divulgação
Cena em que o Capitão América morre nas HQs
"Ele enfrenta terroristas do Oriente Médio, sim, mas com discurso de enfrentar o terror, não o islamismo. Nesse momento, ele se aproxima da propaganda ideológica. Mas a editora nega utilizá-lo no território árabe enfrentando árabes. Ele está sempre em solo americano", diz Sávio.
No final dos anos 2000, surge o arco de histórias conhecido como "Guerra Civil", em que os personagens da Marvel se dividem em dois grupos: o contra e o a favor do registro obrigatório de heróis nos Estados Unidos. E para surpresa de alguns, o líder dos opositores é o Capitão América.
"Existe um momento em que ele prevê que o governo vai dizer para os heróis quem são os vilões. E para ele isso vai contra o altruísmo dos heróis."
Depois da saga, Steve Rogers morre baleado e é substituído por Bucky, seu antigo parceiro que, ao contrário de seu mentor, age de forma mais violenta e agressiva. A mudança traz críticas aos editores - os fãs pedem o retorno de Steve Rogers ao uniforme de Capitão América.
Sobre a postura da Marvel diante da adaptação aos cinemas de um personagem tão emblemático, Sávio afirma: "Qualquer produto americano vende a ideia do que é ser norte-americano, mas como o mercado está ficando plural, o que as empresas fazem com os seus produtos é torná-los mundiais".


Originalmente publicado em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/capitao+america+um+heroi+menos+imperialista+do+que+parece/n1597105942384.html