sexta-feira, 7 de setembro de 2007

As tradições Shaolin



A china, em relação com o restante do mundo asiático, sempre teve posição de destaque, 1.500 anos, no comércio das especiarías e na pluralidade dos sistemas marciais. Boa parte do trajeto da rota da seda se dá dentro dos limites de seu território, unindo reinos e populações diferentes. Os sistemas filosóficos e religiosos, que suas artes marciais internas dependem, floresceram com vigor. Dessa forma, muitas artes chinesas brotaram e foram adaptadas em outros países, como o Japão. Os sistemas marciais, assim como os sistemas filosóficos e religiosos sempre andaram de mãos dadas, o que fez com que disseminassem com facilidade pela Ásia.
Encontraremos, nas obras sobre o tema, o termo Wu-shu, traduzido como “artes militares”, e Kuo Shu como “artes nacionais” para os sistemas marciais chineses. Esse sistema estará subdividido entre duas escolas, inicialmente: escola dura e escola mole. Essa conveniente classificação enganar se for entendida como diferentes, divididas por uma rígida barreira entre elas. Assim como acontece na filosofia taoista chinesa, as coisas se intercalam sem existir negações absolutas. Na escola dura encontraremos a idéia da força sendo contraatacada pela força. Na escola mole a força é usada contra o atacante. Essas duas escolas, por suas próprias naturezas, recebem, também, os nomes de Escola externa e escola Interna. Alguns estudiosos da marcialidade definem como diferença fundamental dessas duas escolas a respiração. Na escola externa, ou seja, nas artes duras, a respiração é superficial, no torax, exatamente no plexo solar. Na escola interna, chamadas artes suaves, a respiração profunda-se no baixo abdomên.
O mito de Boddhidarma explica a criação e desenvolvimento do básico sistema de luta nascido no templo Shaolin, localizado na cadeia de montanhas de Songshan, na província de Honan. Historicamente, sabe-se que esse templo auxiliou militarmente o Imperador T´ai Tsung, da dinastia T´ang (618 – 907). O templo foi construído em 495 d.C. pela administração do imperador Hsiao We, para instalação do monge indiano Batuo, chamado em chinês de Fu Tuo. Bodhidarma viria a visitar o templo no século VI, ensinando uma nova maneira de se praticar os ensinamentos de Buda, o que culminou na fundação da escola Ch´an, que os japoneses posteriormente chamarão de Budismo Zen. Depois do auxílio ao imperador T´ai Tsung, os monges guerreiros de Shaolin voltariam em 1674, na dinastia Ching, auxiliar o imperador K´ang Hsi. Nas duas participações dos lendários guerreiros-monges, títulos de nobreza foram negados, no primeiro caso, o imperador grato consentiu a continuidade do templo, no segundo, o Imperador K´ang Hsi temeu a força militar existente no templo voltar-se contra o império e atacou Shaolin sitiando o templo e incendiando-o. O templo viria novos incendios em seguida, em sua longa história.
Sabe-se que muitos monges sobreviveram a destruição do templo de Shaolin, indo a outros templos ensinar as artes de luta. Conta a lenda que sobreviventes dos eventos em Shaolin, desgostosos com os governos seguintes, fundaram as famosas sociedades secretas chinesas. Outra saída para os habilidosos monges-guerreiros foi a Ópera de Pequim, associando dança e acrobacias. Artes marciais e artes circenses sempre tiveram em comum a disciplina e o autocontrole.
A China é uma imensa nação, um verdadeiro universo de etnias e grupos populacionais. Robert Smith, em seu livro Asian Fighting Arts, enumera mais de 400 estilos distintos. Esses estilos, cada um a sua maneira, entrelaçaram-se com os sistemas filosóficos, como taoísmo e confucionismo, e religiosos, como as várias escolaridades budistas. Os sistemas de luta são, para as concepções filosóficas, técnicas auxiliares ao progresso espiritual.
As artes marciais foram fundamentais na formação das sociedades secretas chinesas. Problemas políticos e perseguições insentivaram a formação dessas organizações, que foram mais que movimentos sociais chineses, mas, também, núcleos de intensões revolucionárias contra autoridades abusivas. São citadas, nas eventualidades dessas sociedades secretas enquanto força política, os Boxers e a Tríade. Uma rebelião Pa-kuá, entre 1786 e 1788, expulsou os estrangeiros do território chinês, ficou conhecida como a Revolta dos Boxers. A Tríade, cerimonialmente semelhante a maçonaria, começou como uma organização revolucionária para depor o imperador. Tristemente, tornou-se, nas relações modernas, representantes do crime organizado da China. O desconforto social entre XVIII e XIX causou mudanças fundamentais nas estruturas políticas e sociais. A restauração Ming nunca ocorreu, como era desejo dos revolucionários, mas houve, então, a revolução comunista, estabelecendo-se a República Popular da China. Assim com a muitos séculos antes, as forças marciais viram-se ameaçadoras demais para os poderosos governantes e, na revolução Cultural de 1960 a atividade marcial foi perseguida e desencorajada. Escolas marciais foram desaprovadas pelo Estado, com temor de formarem grupos paramilitares fortes. Mas a sobrevivência se deu através do mercado e do cinema, em Hong Kong e Taiwan.
O Kung Fu, termo que mais se popularizou no ocidente, tornar-se-ia o conjunto de estilos oriundos de um sistema de luta original. Assim, são chamados Kung Fu todos os estilos de boxe chinês, atualmente. Kung Fu significa “aquilo que é feito com tempo e dedicação”, e se aplicaria a quaisquer artes, seja dança, marabalismo, culinária ou música. Mas fortificou-se como a dedicação aos sistemas de luta. Boa parte da culpa é do cinema, que tratou o termo de tal forma. Mas não foi somente na modernidade que o papel de diversão das artes marciais se aplicou, já que em festividades tradicionais chinesas as demonstrações de lutas, de sequências ensaiadas de movimentos e até a famosa expressividade da Dança do Leão, fazem-se presentes. Virtuosismo acrobático e coreografias fazem parte desse universo que em momento algum conflita com o dilema moral das artes marciais.

Sávio Roz

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